Como a família de Lampião e Maria Bonita guardou em casa por 20 anos os crânios dos reis do cangaço

Lampião e Maria Bonita – Foto: Acervo/Globo

Duas caixas de madeira armazenadas de forma provisória em um museu de São Paulo guardam o mais novo capítulo da longa história de Maria Bonita e Lampião. Os fragmentos de um dos casais mais famosos do Brasil deixaram os laboratórios da Faculdade de Medicina da USP depois de três anos e meio de estudos.

No começo dos anos 2000, as duas netas do casal foram avisadas de que o cemitério em que os crânios estavam sepultados, em Salvador, poderia passar por mudanças, e os restos mortais corriam risco de se perder.

“Estavam todos os dois encaixotados. Nós trouxemos na própria caixinha que estava na gaveta e guardamos. E de vez em quando tirava para tomar um sol. Até então a gente não tinha ideia do que fazer”, disse Gleuse Ferreira, de 69 anos, neta do casal e filha de Expedita Ferreira.

“Era segredo de família”, lembra Expedita, de 92 anos, única filha de Maria Bonita e Lampião. “Guardava em casa [os crânios], como se guarda uma roupa, como se guarda um sapato”, completou.

Crânio reconstruído de Lampião (à esq.) e o de Maria Bonita (à dir.), segundo a USP — Foto: G. Ceccantini

Em setembro de 2021, os dois crânios foram encaminhados ao Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

O grupo de especialistas tentou extrair material genético para comparar com o DNA de parentes, mas não foi possível.

Os pesquisadores acreditam que a intensa manipulação e o armazenamento em diferentes soluções para suposta preservação, como querosene e sol, tenham deteriorado qualquer remanescente de material genético viável para a análise. No entanto, não há dúvidas sobre a identidade.

“A nossa certeza é muito forte, bem justificada e testada pelas evidências, teorias e provas de que esses crânios constituíram as cabeças que estiveram em exposição no IML Nina Rodrigues, em Salvador, que por sua vez vieram do IML de Maceió, em 1938, e que um dia foram Lampião e Maria Bonita, assassinados em 1938 na Gruta de Angico, na divisa de Sergipe e Alagoas”, afirmou o doutorando e historiador José Guilherme Veras Closs, um dos responsáveis pelo estudo.

Crânio de Lampião antes do trabalho de pesquisa da USP — Foto: M. Okumura

O caminho dos crânios

  • Virgulino Ferreira da Silva (1897-1938), eternizado como Lampião, nasceu na comarca de Vila Bela, no estado de Pernambuco. Entrou para o cangaço por volta dos 19 anos, motivado por vingança e desavenças entre famílias.
  • Maria Gomes de Oliveira (1910-1938) nasceu em Malhada da Caiçara, no estado da Bahia. Conhecida por sua relação com Virgulino, tem sua memória enquanto rainha do cangaço.
Crânios são estudados pela USP em SP — Foto: Carlos Henrique Dias/TV Globo

A reconstrução foi o primeiro grande trabalho dos pesquisadores. O crânio de Maria Bonita estava mais íntegro, mas o de Lampião chegou como um monte de cacos.

“Completamente diferentes. O do meu bisavô era um monte de caquinho, eu lembro que olhei e enxergava, sabe, coco seco? Essa é minha imagem. Era de muito pedacinho de coco seco sem a carne. O dela, não. O dela sempre esteve intacto. O dele, você olhava e não enxergava um crânio”, disse a bisneta Gleuse Ferreira, de 43 anos, que tem o mesmo nome da mãe.

Segundo o relatório dos pesquisadores, a história do cangaço, que é marcada por polêmicas e controvérsias, surgiu no Nordeste, no fim do século XIX. Para uns, eram homens que lutavam por justiça social. Para outros, bandidos conhecidos pela violência, por assassinatos e estupros.

Trajetória dos crânios de Lampião e Maria Bonita — Foto: Reprodução

O grupo de Lampião foi morto em Angicos, em 28 de julho de 1938. Onze cangaceiros tiveram suas cabeças decepadas, alguns ainda em vida, e colocadas na escadaria de uma igreja, em Piranhas (AL).

De 1944 a 1969, em Salvador, as cabeças ficaram expostas no museu do Instituto Médico Legal (IML) Nina Rodrigues. Em 1969, a família conseguiu o direito de sepultar os restos mortais do casal no Cemitério Quinta dos Lázaros, também em Salvador. Em 2002, a guarda dos crânios passou a ser feita por Expedita e Vera Ferreira, também filha de Expedita e neta do casal, em Aracaju (SE), até 2021.

O relatório do trabalho de reconstituição detalha a tarefa meticulosa feita pelos especialistas: “O alto grau de fragmentação dos restos esqueletais de Virgulino representou um grande desafio para sua reconstituição”.

E segue: “Uma vez feita a reconstrução do crânio e do pouco material pós-craniano presente, foi possível observar evidências da decapitação (incluindo danos a base do crânio, às vertebras cervicais e ao osso hioide), assim como de muitas fraturas ‘perimortem’, decorrentes do tratamento dado brutal a esse indivíduo no período imediatamente anterior e posterior ao óbito. A análise de patologias orais indica uma saúde bucal bastante ruim, com extensa perda de dentes ‘antemortem’”.

Closs, pós-graduando pelo programa de fisiopatologia experimental da Faculdade de Medicina da USP, destaca que, “para além de herói ou bandido, a gente pode olhar para o ser humano”.

“Eu acho que o grande lance é: eles são personalidades que chamam atenção, mas nesse momento acho que não mais pelo que permitiu que se tornassem tão grandes, e sim porque eles são seres humanos. O cuidado com o remanescente humano tem que ser igual ao cuidado por ser humano vivo”, afirmou.

Futuro museu

A bisneta Gleuse afirma que o próximo passo é tirar do papel o plano para um museu com um acervo guardado pela família.

“Já tem o terreno, e a gente espera [construir o museu] daqui a três anos. A gente está no desenvolvimento do projeto”.

O acervo, segundo Gleuse, é composto por armas, punhal, um cacho de cabelo de Maria Bonita, joias e fotografias.

“O Memorial do Cangaço conta com o aval e a curadoria da família Ferreira. A proposta vai além de um museu tradicional: queremos um espaço que seja também um centro de estudos sobre o fenômeno do cangaço, um local onde documentos, objetos, comportamentos e toda a riqueza cultural e histórica desse período sejam pesquisados e preservados. A família tem a expectativa de ceder o acervo que está sob sua guarda, garantindo que o público possa conhecer de perto objetos pessoais, armas e outros bens que pertenceram a Lampião e a Maria Bonita”, explicou Alex Daniel, advogado da família de Lampião e Maria Bonita.

Parte dos objetos guardados pela família — Foto: Arquivo pessoal

Por Carlos Henrique Dias, TV Globo — São Paulo

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